A desconexão frente ao paradigma espaço-tempo foi tema de curso da Escola Judicial para o corpo funcional do TRT-16
“No atual ‘mundo líquido’ defendido por Bauman, tudo é muito instantâneo, especialmente, na era digital, marcada pela ansiedade. Por que tanta pressa?”. Foi esta a reflexão primordial que a juíza Andrea Keust Bandeira de Melo, titular da 8ª Vara do Trabalho de Recife (TRT da 6ª Região - Pernambuco), trouxe para os participantes do curso “A Porosidade do Tempo e o Direito à Desconexão sob a Ótica da Saúde Mental”. A capacitação foi realizada pela Escola Judicial do Tribunal Regional do Trabalho da 16ª Região (Maranhão), nos dias 3 e 4 de setembro, no Auditório da EJud16.
Ao apresentar a instrutora do curso, a desembargadora Solange Cristina Passos de Castro, diretora da Escola Judicial, relembrou a amizade que as une desde que iniciaram suas carreiras na magistratura e teceu elogios ao comprometimento, dedicação e profissionalismo da colega de profissão. “Quero fazer uma saudação especial de boas-vindas a esta excelente profissional, minha amiga de longa data, e dizer da minha felicidade por sua presença no TRT do Maranhão, para nos enriquecer com seus conhecimentos”, destacou a desembargadora.
A juíza iniciou o curso convidando os participantes a refletirem sobre o conceito de tempo e como ele impacta cada pessoa no cotidiano. Para tanto, foram abordados diversos aspectos em que o tempo é apresentado ao longo da história da Humanidade, passando pela Mitologia Grega, nas figuras de Cronos (deus do tempo que se mede, o cronológico) e Kairós (deus do tempo oportuno, o momento). Nos tempos atuais, a evolução do conceito do “tempo” está atrelado ao conceito de “espaço”, sobretudo, na sistemática do mundo laboral. Esta nova forma de entendimento foi trazida pela modernidade líquida, como defende Zygmund Bauman, com a introdução de novos elementos a serem considerados. Segundo Bauman, “todas as partes do espaço podem ser atingidas no mesmo período de tempo”, demonstrando que o tempo é caracterizado por sua instantaneidade, em que o espaço vai perdendo a sua importância. E é assim que podem ser entendidas as evoluções das noções e a sensação de que o tempo passa a ter uma permeabilidade (porosidade) diferenciada e se sobrepõe à densidade, que foi uma característica do tempo anterior à Era Digital.
Aspectos como a medição do tempo, a divisão do tempo, os relógios ao longo da história, como as pessoas se sentem com a passagem do tempo e como a hiperconexão digital dos dias modernos tem causado abalos à saúde das pessoas foram pontos discutidos com riqueza de detalhes. Segundo seus estudos, Andrea Keust constatou, por exemplo, que “a luminosidade tem capacidade de regular todos os ritmos materiais e psicológicos do corpo humano, agindo sobre vários sistemas, ditando o ciclo vigília-sono, o ciclo digestivo, o controle da temperatura corporal, a atividade locomotora, a síntese de corticosteroides, os níveis de flutuações hormonais e a renovação celular”. Ou seja, o ciclo circadiano (regulado pelo relógio biológico) sofre alterações quando exposto a determinados fatores, levando o organismo a se adaptar às melhores condições, até antecipando respostas aos estímulos externos da rotina diária. No caso dos aparelhos eletrônicos, tão úteis no trabalho e que facilitam a comunicação, também oferecem infinitas opções de lazer. Porém, se usados com exagero, podem ser prejudiciais à saúde. No mundo do trabalho moderno, por exemplo, os smartphones são praticamente indispensáveis em atividades como o teletrabalho, as reuniões e audiências on-line, o trabalho por aplicativos e os estudos à distância (EaD).
Em vista dessa conexão ininterrupta exigida pela modernidade, surge a figura do direito à desconexão, justamente, para estabelecer limites que preservem a saúde do trabalhador, em especial, a saúde mental. “O direito fundamental de não trabalhar em seus momentos de descanso, lazer e convívio familiar deve ser por todos respeitado. Mudanças de postura do empregador são necessárias para salvaguardar o direito à desconexão. Somente com a garantia desta, pode-se falar em pleno desenvolvimento da personalidade do trabalhador, na adoção de medidas eficazes e preventivas”, alerta a magistrada. E complementa: “A partir do momento em que a jornada de trabalho extrapola o limite constitucional e adentra na vida pessoal, poderá haver o tolhimento do direito à desconexão e a configuração de dano existencial pelo desrespeito a tal direito. Com esse norte, caminham as decisões do Tribunal Superior do Trabalho que analisam os reflexos da ausência da garantia ao direito do trabalhador à desconexão”.
Ainda foram abordados temas conhecidos, como ansiedade, depressão, medo, estresse crônico recorrente e síndrome de burnout. Mas também outros temas mais recentemente estudados pelos profissionais da área psicológica, tais como hiperconexão autoimposta, infoxicação, infodemia, telepressão, nomofobia, selfit, phubbing, cyberchondria, fadiga de decisão digital, náusea digital, toque fantasma, transtorno de adaptação ou de ajustamento, fomo, zoom fatigué, boreout, burnon e síndrome da cabana.
Segundo a juíza Andrea Keust, o direito à desconexão deve ser observado e implantado justamente para que se permita atribuir um sentido à vida que se tem fora da esfera laboral. “É urgente que se discuta acerca dos impactos da hiperconectividade sobre o corpo e a mente, mas é mais urgente ainda que passemos a ter um olhar diferenciado para crianças e adolescentes, que estão mergulhados dentro do mundo virtual, seja para estudar, aprender, mas, sobretudo, para a diversão nos incontáveis games que os afastam do convívio ‘olho no olho’, indispensável para a formação dos laços afetivos e dos vínculos de pertencimento”, destacou.
Capacitação
O curso teve como objetivo principal expandir o diálogo sobre a compreensão e os impactos do uso de ferramentas eletrônicas na saúde mental, assim como sensibilizar acerca do excesso de informações que são consumidas diariamente nos diferentes âmbitos de convívio. Para tanto, é importante estabelecer a gestão do tempo como uma prática fundamental que deve ser implementada na rotina de todas as pessoas, como forma de prevenir os adoecimentos ligados ao excesso de informações e de conexão.
A Escola Judicial emitirá certificados para os participantes, que devem acessar o Portal da EJud16 para responder um questionário de avaliação pós-evento, acerca dos conteúdos e conhecimentos adquiridos.
Andrea Keust Bandeira de Melo
Juíza do Trabalho no TRT da 6ª Região (Pernambuco), titular da 8ª Vara do Trabalho de Recife. Especialista em Processo Civil pela UNIPE. Pós-graduada em Direito à Saúde e Direito Médico pela UNIVASF. Pós-graduada em Psicologia Jurídica, pela Faculdade IDE. Graduada em Direito pela UFPE. Graduada em Psicanálise pelo Instituto Freudiano de Pernambuco (IFP). Gestora do Programa de Combate ao Trabalho Infantil e Estímulo à Aprendizagem nos Biênios 2018-2020 e 2021-2023. Membro do Subcomitê de Enfrentamento ao Assédio Moral e Sexual em 2023. Membro do Comitê de Prevenção e Enfrentamento ao Assédio e à Discriminação do CNJ. Membro da Academia Brasileira de Ciências Criminais (ABCCRIM), sendo membro integrante da Comissão de Saúde Mental. Supervisora e Coordenadora Adjunta do CEJUSC 1º Grau de Recife-PE no Biênio 2023-2025. Escritora, palestrante e professora.