A Justiça Absurda: Agostinho Ramalho confronta o texto literário e o texto teórico

quinta-feira, 8 de Maio de 2014 - 8:18
Redator (a)
Wanda Cunha
Agostinho Ramalho


Iniciado, nesta quarta-feira (7), o curso “A justiça Absurda: uma leitura de O Estrangeiro, de Albert Camus”, ministrado pelo professor Agostinho Ramalho Marques Neto.  A atividade faz parte da I Semana de Formação de Magistrados do Tribunal Regional do Trabalho do Maranhão, sob a organização da Escola Judicial (Ejud) do Tribunal. A Semana começou na segunda-feira (05), com término programado para sexta-feira (09) e está sendo realizada no 1º andar do prédio-sede do Tribunal, no auditório da Ejud.

Na abertura, o professor Agostinho Ramalho teceu considerações sobre o projeto do curso: “tomando-se como metáfora o romance O estrangeiro, de Camus, o curso se propõe a pôr em questão a lógica que sobredetermina a estrutura e o movimento de um julgamento jurídico-penal,  a partir da hipótese de que “quando se está julgando algo, é ‘outra coisa’ que está sendo julgada”, disse. Desenvolvido à luz de uma tentativa interdisciplinar, o curso tem como proposta alcançar consequências teóricas que partem de reflexões suscitadas pelo texto literário. 

O professor explicou que, durante o curso, a obra de Camus será indagada no eixo da filosofia jurídica e da psicanálise, sem que tal indagação retire do texto o seu sabor literário. E citou Roland Barthes: “O prazer do texto é saber com sabor”, observando que ambas  as palavras, saber e sabor, têm, em latim,  a mesma etimologia (sapere e sapore): a primeira significa ter gosto, perceber pelo sentido do gosto; a segunda significa gosto, sabor característico de uma coisa. Também, o curso será desenvolvido no âmbito da oposição lei (referente a jurídico); e Lei(sentido psicanalítico, ético do termo).

Em seguimento, o professor observou que o objetivo específico do curso é evidenciar que os julgamentos, no campo do direito e, particularmente do direito penal, estão sujeitos a determinações subjetivas, ou seja, para além dos argumentos de caráter racional baseado nas provas. Essas determinações, por serem geralmente inconscientes, promovem desvios e  acabam  trabalhando não a lógica do direito, mas o avesso dessa lógica. “O objetivo é evidenciar que o julgamento vai além do caráter racional”, disse. Na oportunidade, mencionou que os juízes chegam ao julgamento antes das razões, fazendo um percurso inverso da própria estrutura da sentença.

Agostinho Ramalho levantou a questão: “quando se está julgando algo, o que é mesmo que está sendo julgado? Em seguida, voltou a asseverar que é uma outra coisa que vai determinar aquilo que estamos julgando. “O livro nos põe brilhantemente diante dessa hipótese”, acentua. E lembra que, mesmo que Mersault, o protagonista de “O estrangeiro”, tenha matado um árabe, ele vai ser condenado porque não chorou no enterro da mãe. ”A hipótese traz pra nós o que Freud chamou de ‘uma outra cena’. A cena que está em julgamento não é a mesma  que está sendo analisada. Isso implica que há uma cena de absurdo em todo o julgamento”, pondera.

Nessa linha de raciocínio, Agostinho Ramalho faz comparação entre o texto literário e o texto teórico. “Diante da obra de arte, a posição do sujeito é mais de analisando que de analista, pois a obra de arte dá o que falar. Quem está no lugar de analista é a obra de arte. A obra de arte põe você no lugar de analisando”, explica. Lembra que a leitura de um texto literário é uma interlocução, é um trabalho de coautoria; é o estilo do intérprete e que estilo é como marca da subjetividade. O professor corroborou a assertiva com o que dissera Buffon: “O estilo é o próprio homem”.

Ramalho ainda citou Ferreira Gullar para espelhar as características do texto literário: “A arte só revela a realidade inventando-a”, observando que a arte é uma recriação, é uma invenção da realidade. “Inventar no latim é achar, inventar no sentido de criar ou de achar”, confirmou. Para reiterar sua assertiva, o professor citou Picasso “No meu trabalho eu não procuro nada, acho.”

Agostinho Ramalho também explicou que a interdisciplinaridade implica cuidados e que articular campos do saber tem implicações éticas e políticas; que não se pode dissolver a especificidade de cada campo. Exemplificou que o sujeito não é igual no direito, na filosofia, na psicanálise, assim como a verdade. Em seguimento, amarrou sua explicação dizendo que texto teórico demonstra e o texto literário mostra. Mas que os dois textos (teórico e poético) não se excluem. E voltou a citar Barthes: “A literatura põe a linguagem em cena”.

Ao final, fez uma comparação entre as obras de Camus, “O mito de Sísifo”, texto de filosofia em que ele tenta fazer a filosofia do absurdo, e “O estrangeiro”, em que ele põe o absurdo em ação. A primeira demonstra; a segunda mostra. “A filosofia nunca esgotará a literatura!”. Em “O Mito de Sísifo”, o absurdo não está no homem nem no mundo; o absurdo está na situação na qual o homem está jogado no mundo. “O ser humano está no mundo para o qual não basta. O ser humano é um ser para a morte. A diferença é que o homem sabe que vai morrer. Na literatura, não há o que esclarecer nem submeter à razão; basta mostrar. “O estrangeiro” mostra a inutilidade da razão. No livro, delineia-se uma justiça absurda, incapaz de compreender o que se quer atingir.

Feitas essas considerações, Ramalho apontou alguns aspectos de construção da linguagem de O Estrangeiro, como as frases curtas, comparando-a à telegráfica e à cinematográfica, ao mostrar fragmentos do cotidiano. À luz da teoria literária, também fez comentários sobre a narrativa: a história é contada na 1ª pessoa do singular, ou seja, mostrando o que passa no interior do personagem-narrador:“Hoje mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei. Recebi um telegrama do asilo: "Mãe morta. Enterro amanhã. Sinceros sentimentos." Isso não quer dizer nada. Talvez tenha sido ontem”.

Para o professor, a natureza tórrida se acrescenta à trama. Assim, o sol é um autêntico personagem. No livro há justaposição de imagens de personagens, fragmentos do cotidiano e repetição de frases do tipo “a culpa não é minha”. O professor fechou as primeiras horas do curso fazendo um relato do assassinato do árabe, ou seja, uma síntese da primeira parte da obra. O curso se estende até quinta-feira (08). O que virá nas próximas horas? Quiçá, o julgamento de Mersault, o protagonista, o diálogo entre os textos literário e teórico. Mas, com certeza, mais reflexões, mais elucidações.

Agostinho Ramalho Marques Neto é professor universitário nas áreas de Filosofia do Direito e Filosofia Política. Membro fundador do Núcleo de Direito e Psicanálise do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná. Membro da Academia Maranhense de Letras.

Clique aqui para saber mais sobre “O Estrangeiro”.

32 visualizações