Trabalho Infantil - Pobreza que se transmite, de pai para filho

sexta-feira, 2 de Outubro de 2020 - 12:25

Você certamente já ouviu pessoas, algumas das quais dando exemplo de sucesso profissional, dizendo que começaram a trabalhar cedo e isso não lhes causou mal nenhum. Não acredite. Trabalhar antes da idade adequada causa males irreversíveis. 

Trabalhadores infantis que, quando adultos, obtiveram algum sucesso, são exceções à regra, cada vez mais escassos, fruto de superação, esforço desmedido e, até, sorte. Em muitos casos, se tivessem tido a oportunidade de se preparar melhor em vez de trabalhar, poderiam ter atingido patamares mais elevados no plano intelectual e na vida, pessoal e profissional. 

O mundo evolui e a própria idade mínima para o trabalho vai sendo ampliada, conforme as exigências de maior preparo. As dificuldades e a concorrência vão aumentando e, quem não acompanha tal evolução, não tem condições de competir. 

A análise é simples. Imagine duas crianças, uma brincando, se divertindo, desenvolvendo atividades lúdicas, a outra trabalhando, sem a oportunidade de recreação e convívio saudável com meninos e meninas de sua idade. Quem é e será mais feliz? 

Uma vez perdida, a infância não volta mais. Pior: perde-se também a capacidade de sorrir. O trabalho precoce gera adultos frustrados, tristes, amargurados. 

Há também o aspecto educacional a ser considerado. 

No Brasil, o Estado tem o dever de propiciar educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade. Está na Constituição da República (art. 208) e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB — Lei n. 9.394/96).   

A educação básica é formada pela educação infantil, ensino fundamental e ensino médio. Bom lembrar que os pais ou responsáveis são obrigados a matricular também as crianças na educação infantil (no caso, na pré-escola) a partir dos 4 (quatro) anos. 
         
Ou seja: a criança começa a ser preparada já na creche (que também compõe uma das etapas da educação infantil). A partir dos 4 (quatro) anos, porém, há um dever bilateral: do Estado, de fornecer pré-escola (educação infantil), e, por outro lado, dos pais ou responsáveis, de matricular e garantir que as crianças sob seus cuidados estudem. 
Então, além de brincar e se divertir com outros meninos e meninas, desde quando completa 4 (quatro) anos de idade a criança deve frequentar a escola. Passa ela a ser titular do direito fundamental à educação. Qualquer educação? — Por evidente, não! 

É preciso assegurar que além de gratuita e universalizada (para todos), a educação básica pública seja de qualidade. Mais: deve ser atrativa. 

Para além disso, necessário que seja completa, integral, preparando para o exercício pleno da cidadania e, de forma gradual, passar a ser em tempo também integral, sem abrir mão do lazer, arte, cultura, educação física e esportiva e formação diversificada. 

Não é à toa que a LDB assegura (art. 4º, V) acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um, bem como (IX) padrões mínimos de qualidade de ensino, definidos como a variedade e quantidade mínimas, por aluno, de insumos indispensáveis ao desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem. 

Para que se cumpra, portanto, aquilo que, no papel (CRFB e LDB) já está assegurado, necessário resgatar a qualidade do ensino público. Pré-escola aos 4 e 5 anos, ensino fundamental dos 6 aos 14 e ensino médio dos 15 aos 17, em situação normal. Tudo de excelente qualidade. É o que se almeja e deve ser assegurado. 
Só a educação garante desenvolvimento pleno, dos seus destinatários e, por fim, da Nação. Educação, portanto, é, sem dúvida, o melhor investimento no futuro. 

Excetuados os que eventualmente ajam de má-fé, talvez quem defenda o trabalho infantil baseado em experiência pessoal nem seja totalmente culpado por reforçar mitos, como aquele que mais se propala de que é melhor trabalhar do que roubar. 

Por certo pode faltar-lhe capacidade de discernimento para entender que essas não são opções válidas, pois trabalhar antes da idade mínima prevista no ordenamento jurídico é proibido e roubar, então, ilícito. Melhor do que isso, pois, seria estudar, preparar-se adequadamente e, só no momento oportuno, começar a trabalhar. 
O trabalho precoce subtrai horas de lazer e estudo. Com isso, gera adultos frustrados, infelizes, despreparados para competir com aqueles que puderam dedicar seu precioso tempo às brincadeiras, otimização e potencialização de seus talentos e capacidades.  

A equação, portanto, é extremamente perversa. Quem nasceu econômica e socialmente menos favorecido, tem como triste sina a eternização da miséria. O trabalho infantil tem, na pobreza, causa e consequência. É um círculo vicioso, que se retroalimenta. 

Pavorosa herança que se transmite de pai para filho, comprometendo gerações. 

A pobreza conduz ao trabalho precoce. O trabalho antes da idade ideal provoca evasão escolar ou, no mínimo, cansaço, desmotivação, desinteresse e, consequentemente, baixo rendimento escolar. A exclusão do processo educacional ou o processo formativo incompleto, falho, comprometido, gera pessoas com inaptidão cognitiva e intelectual e sem qualificação profissional. Tais pessoas, em razão do despreparo, estão fadadas ao desemprego ou, se muito, ao subemprego. Da ausência de renda ou dos salários aviltados pela baixa ou nenhuma qualificação, resulta aquilo que foi causa do trabalho infantil: pobreza. E assim, de pai para filho, transmitem-se e perpetuam-se ignorância e penúria. |

Assegurar o direito à educação e ao não trabalho antes da idade mínima permitida é, além de meio para romper tal fatalidade intergeracional, também questão de justiça. 

Os mais pobres precisam ter a oportunidade de se preparar para alcançar condições mínimas de competir com os que, cientes de que a graduação não é mais o teto, mas o piso para se obter trabalho decente e digno, estão já fazendo pós-graduação lato (especialização) e até stricto (mestrado, doutorado e pós-doutorado) sensu antes de começar a trabalhar.      

Apesar de tudo isso, que aparenta ser de obviedade ululante, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística — IBGE apontava, na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios — PNAD Contínua, em 2017, que no ano anterior, 2016, tínhamos ainda 1,8 milhão de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos sendo explorados pelo trabalho. 
Na verdade, o número era ainda maior e o quadro mais grave. Em virtude de mudança metodológica, o IBGE desprezou 716 mil crianças e adolescentes na mesma faixa etária que trabalhavam para o próprio consumo, sendo correto afirmar que havia, então, 2,516 milhões de trabalhadores infantis.(4) São os números disponíveis mais recentes.(5)

Muitos, além de perderem a infância, estão perdendo a vida. Nos últimos 11 anos (de 2007 a 2018), ocorreram 261 mortes, conforme dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação SINAN/SVS, do Ministério da Saúde. Sem considerar a subnotificação e/ou casos de ausência de estabelecimento de conexão com o trabalho de crianças e adolescentes que efetivamente estavam trabalhando quando se acidentaram, outras 662 crianças perderam pelo menos uma das mãos no mesmo período no trabalho.

Acentue-se, também, que embora tenha havido atualização até 15 de março de 2019, para os anos de 2016, 2017 e 2018, os dados são ainda parciais, podendo sofrer novas atualizações. De 2007 a 2018 foram 26.365 acidentes graves envolvendo crianças e adolescentes enquanto trabalhavam, sendo que 763 deles tinham entre 5 e 13 anos de idade. No total, foram 43.777 agravos à saúde relacionados ao trabalho de meninos e meninas brasileiros, vítimas da tragédia diária do trabalho prematuro. 

Poucos, porém, compreendem que o trabalho infantil não destrói só a infância e a perspectiva de futuro de quem o pratica. Ele compromete, também, nossa capacidade de desenvolvimento como Nação. O Brasil precisa entender, definitivamente que da economia do mundo globalizado estarão excluídos aqueles que não se prepararem adequadamente.     

Estamos vivendo a era da automação, da evolução tecnológica. Existem profissões hoje que desaparecerão amanhã e existirão, amanhã, aquelas com as quais hoje nem sonhamos. O preparo e qualificação constantes são, assim, exigências mercadológicas. 

Como, então, defender o trabalho infantil num cenário como este, agravado por milhões de trabalhadores desempregados e mal qualificados? — A busca incessante do pleno emprego, prescrita também na nossa Lei Maior, passa, necessariamente, pela qualificação e ocupação das vagas existentes por adultos, e não pela exploração do trabalho infantil. 

 Aliás, pais trabalhando e com salário digno, terão condições de impedir que seus filhos sejam arregimentados e explorados pelo trabalho infantil. 
                                                                                                                                              
Crianças e adolescentes, detentores do direito subjetivo a uma proteção que deve ser integral e absolutamente prioritária (art. 227 da CRFB), precisam, isto sim, desenvolver seu lado lúdico, estudar e obter a melhor formação e capacitação possíveis. 

Família, sociedade (também a comunidade, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, dando ideia de proximidade maior) e Estado, não necessariamente nessa ordem, têm o dever de assegurar essa proteção tão necessária e qualificada. 

Não é um amparo qualquer. 

O Brasil é comprometido com a Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas — ONU. São 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável — ODSs e 169 metas nessa Agenda universal, que visam a reafirmar e dar concretude aos direitos humanos de todos. Os ODSs são, conforme a ONU, integrados e indivisíveis, e equilibram as três dimensões do desenvolvimento sustentável: a econômica, a social e a ambiental. 

O objetivo trata do compromisso mundial de promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e produtivo e trabalho decente para todas e todos. Dentre suas metas, está a 8.7: Tomar medidas imediatas e eficazes para erradicar o trabalho forçado, acabar com a escravidão moderna e o tráfico de pessoas, e assegurar a proibição e eliminação das piores formas de trabalho infantil, incluindo recrutamento e utilização de crianças-soldado, e até 2025 acabar com o trabalho infantil em todas as suas formas. Ou seja: para as piores formas, nem prazo há mais. Eliminemo-las já!

Busquemos, pois, o envolvimento e conscientização de todos sobre a importância de combater o trabalho infantil e lutar pela educação que garanta às nossas crianças e adolescentes uma perspectiva melhor e, ao Brasil, o futuro que merece.                                                                                                                                              
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(1) Ministra do TST, coordenadora nacional do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil e Estímulo à Aprendizagem da Justiça do Trabalho e doutora em Políticas Públicas, com foco na precarização do trabalho no Brasil. 
(2) Desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região — Campinas, presidente do Comitê de Erradicação do Trabalho Infantil do TRT-15 e gestor nacional do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil e de Estímulo à Aprendizagem da Justiça do Trabalho (TST-CSJT), mestre em Direito pela Universidade Metodista de Piracicaba, especialista pelo Instituto Europeu de Relações Industriais (Sevilha-Espanha) e professor na Faculdade de Direito de Sorocaba. 
(3)Advogado, Juiz do Trabalho aposentado, ex-gestor nacional do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil e de Estímulo à Aprendizagem da Justiça do Trabalho (TST-CSJT), mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC- -SP, professor, jornalista e radialista.
(4) Há respeitáveis opiniões de que seriam 2,4 milhões de trabalhadores infantis, a partir do cruzamento de dados e exclusão daqueles que estariam, regularmente, na condição de aprendizes. Optamos por manter o critério adotado na PNAD anterior, por não haver segurança da regularidade da aprendizagem. 
(5) O IBGE chegou a anunciar que, em 19 de junho de 2019, seria retificada a pesquisa de 2017 e divulgados os novos resultados (de 2018), observando parâmetros traçados em Resolução da OIT. A previsão foi alterada para 19 de julho e, agora, final de novembro de 2019. 

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